INTIMIDADE
1-Enquanto assistia à dissolução do cubo de açucar numa chávena de chá de camolila, Chloé, com cuja companhia eu contava para dar um sentido à vida, observou:
- Não podemos viver juntos porque eu tenho um problema: preciso de viver sózinha, se não, derreto. Não é uma questão de fechar uma porta, é uma questão psicológica, uterina. Não é que eu não te deseje, mas tenho medo de só te desejar a ti, de descobrir que de mim nada resta. De maneira que, tenta compreender, faz parte do meu lado insuportável, a culpa é minha, mas hás-de ver-me sempre de mala na mão.
2-Eu tinha visto a mala de Chloé pela primeira vez no aeroporto de Heathrow, um cilindro rosa-vivo com uma correia a tiracolo verde fosforescente. Apareceu à minha porta com ela na primeira vez que passou cá a noite, desculpando-se mais uma vez pelas cores berrantes, explicando que só lá enfiara a escova de dentes e uma muda de roupa para o dia seguinte. Parti do principio de que a mala era apenas um elemento provisório, mas ela nunca mais largaria a mala, que arrumava de manhã como se não fôssemos voltar a ver-nos, como se o facto de deixar cá em casa o mais pequeno par de brincos carregasse um insuportável risco de dissolução.
3-Todavia, por mais empenhada que Chloé fosse relativamente à sua independência, com o passar do tempo começou a esquecer cá coisas. Não eram escovas de dentes nem sapatos, mas pedaços dela própria. Começou com a linguagem, deixando-me a sua maneira de dizer nem um em vez de nenhum, de acentuar o an de antes ou de recomendar juízo antes de desligar o telefone. Em troca, adquiriu a minha mania de dizer perfeito e tu lá sabes. Depois, os hábitos começaram a passar de um para o outro; eu senti a mesma necessidade que Chloé tinha de total escuridão no quarto e ela passou a dobrar o jornal à minha maneira, eu acostumei-me a andar em volta do sofá quando tinha um problema para resolver, ela a deitar-se em cima do tapete.
4-Essa difusão progressiva trouxe consigo um grau de intimidade no qual as fronteiras entre nós passaram a não ser atentamente vigiadas. Os nossos corpos deixaram de se sentir vigiados ou avaliados (...) Já conseguíamos manter o silêncio, já não éramos paranoicamente faladores, receosos de deixar morrer a conversa, não fosse o sossego ser considerado sintoma de infidelidade. Cada um de nós tornou-se, nos olhos do outro, confiante, tornando a sedução perpétua (nascida do pavor do seu contrário) obsoleta.
5-Com a intimidade veio o conhecimento das opiniões e dos hábitos de Chloé, mas também de aspectos mais delicados da sua existência: o som da voz quando falava ao telefone na sala ao lado, os roncos do estômago quando tinha fome, a expressão que nela antecedia um espirro, a forma dos olhos ao acordar, o modo como sacudia o guarda-chuva molhado, o som da escova que passava pelos cabelos.
6-A consciência das características um do outro fez surgir em nós a necessidade de nos rebaptizarmos. Chloé e eu conhecemo-nos de posse de um nome que não escolhemos, um nome que nos foi dado pelos nossos pais e oficializado por passaportes e registos civis, e, como é natural, pensámos que a intimidade atingida merecia encontrar expressão (ainda que obliqua) em nomes não utilizados por terceiros. Enquanto no escritório onde trabalhava Chloé era Chloé, na minha companhia, por motivos que não viemos a entender, ficou a chamar-se simplesmente Tidge. Quanto a mim, e porque uma vez a diverti falando do pessimismo dos intelectuais alemães, passei a ser, menos misteriosamente portanto, o Weltschmerz. A importância dessas alcunhas não residia na palavra especifica a que tinhamos chegado – podiamos ter optado por Pwitt e Tic – mas, antes de mais, no facto de termos querido mudar os nomes. Tidge sugeria um conhecimento de Chloé que o Roy da contabilidade não tinha (o conhecimento do som da escova que passava pelos cabelos). Enquanto Chloé pertencia ao âmbito do seu estatuto civil, Tidge situava-se fora da administração pública, no reino mais fluido e ímpar do amor.
7-Quando estávamos sózinhos, passávamos a maior parte do tempo a dizer mal das outras pessoas. Impossibilitados de nos exprimirmos honestamente na maioria das nossas interacções quotidianas, entre nós desforrávamo-nos das nossas mentiras e vingávamos os escrúpulos sociais que nos tinham condicionado. Chloé transformou-se no repositório dos meus juízos sobre amigos ou colegas. Tudo o que eu pensava deles, e não lhes contava, podia agora partilhar com uma plateia solidária e até encorajadora. Era frequente entregarmo-nos a orgias de maledicência. Por mais agradável que seja descobrir simpatias mútuas, nada se compara ao prazer de enunciar ódios mútuos.(...) O amor alimentava-se de permanente crítica de terceiros. A maior prova da nossa lealdade era a nossa monstruosa deslealdade para com todas as outras pessoas.
8-(...) Ao regressar de um jantar de negócios, troçávamos do sotaque e das opiniões das pessoas de quem nos despedíramos educadamente minutos antes. Já deitados na cama, reproduzíamos a conversa acabada de ter: eu fazia o papel do jornalista de barbas que estivera a fazer perguntas a Chloé e ela respondia da mesma forma cerimoniosa que respondera antes, tudo isso enquanto me masturbava debaixo dos lençóis. Eu fingia-me chocado ao descobrir onde Chloé tinha a mão e perguntava-lhe, imitando o tom do mais virginal dos clérigos: “Minha senhora, importa-se de me explicar o que está a fazer com o meu ilustre membro?” “Meu bom senhor”, respondia ela, como uma aristocrata num drama de época, “não faço ideia de como o ilustre membro veio aqui parar.” Ou então Chloé saltava da cama e ordenava: “Por favor, saia imediatamente da minha cama, ou serei obrigada a chamar o meu criado Bernard.” No espaço criado pela nossa intimidade, os formalismos sociais eram vistos à luz da comédia, como uma tragédia de que o elenco resolveu fazer pouco nos bastidores, com Hamlet a agarrar em Gertrudes após o espectáculo e a gritar no camarim: “Fode-me, mamã!”
9-Começávamos mesmo a ter uma história. O amor parece irremediavelmente associado à fábula. Basta dizer: “Um dia, um rapaz conheceu uma rapariga” para as pessoas quererem logo saber o que aconteceu a seguir. (...)
10-(...) E, contudo, Chloé e eu tínhamos efectivamente uma história, uma série de experiências comuns que nos unia. O que é uma experiência? Algo que quebra a rotina da boa educação e, por um breve período, permite-nos testemunhar coisas por meio da sensibilidade exaltada com que acolhemos a novidade, o perigo ou a beleza – e é com base em experiências partilhadas que a intimidade pode crescer. (...)
12-Uns meses depois, estávamos numa boutique de pão em Brick Lane quando um homem de fato às riscas que estava ao nosso lado na fila entregou a Chloé um bilhete todo amarrotado, onde escrevera em letras grandes e irregulares “Amo-a”. Chloé alisou o papel, leu-o, engoliu em seco e olhou para trás, para o homem que lho entregara. Mas ele optou por proceder como se nada tivesse acontecido e fitou a rua com o ar digno de qualquer homem de fato às riscas. Com igual inocência, Chloé dobrou o bilhete e meteu-o no bolso. Foi um incidente tão bizarro que (...) passou a ser uma espécie de leitmotiv na nossa relação, um episódio da nossa história ao qual aludíamos constantemente. Se estávamos num restaurante, passávamos bilhetes um ao outro com o mesmo ar misterioso do homem da boutique de pão, mas que só diziam coisas como Passa o sal, se faz favor. Para quem estivesse a assistir, devia ser esquisito e incompreensível ver-nos desatar às gargalhadas. Mas é essa a essência dos leitmotiv, o facto de se referirem a acontecimentos passados que os outros não compreendem por não terem presenciado a cena que os originou. Não admira que o comportamento auto-referencial, egotista, aborreça os que estão de fora. (...)
(Alain de Botton, Ensaios de Amor)
22.4.08
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