7.1.10

só se come um sonho no natal

por Patricia Reis

"Não me digas nada.

Fecha a porta.

Deixa no trinco, não faz mal.

A tua boca sabe-me a morango e whisky e o teu suor tem aquele amargo do tabaco.

Este quarto não é nosso, é meu. Tudo aqui é apenas meu.

Há um sofá de pele preta e as minhas pernas colam-se, giram, fico com o braço pendurado, a cabeça de lado, a tua mão no meu cabelo. Não há barulho. Apenas o zumbido do frigorífico, o mini-bar. Parece que me ouves. A tua língua pára, levantas-te do chão, os joelhos marcados, pêlos ásperos do tapete, lã a desenhar arabescos, flores e pássaros, não consigo defini-los com exactidão.

Não interessa.

Tu de pé, eu a gemer, sem a tua língua. A mão na porta do mini-bar, uma garrafa de champagne de pequenas dimensões, a rolha e o poc a fazer borbulhas de gás. Continuo de barriga para baixo e tu despejas o champagne no meu sexo e bebes.

O frio faz-me estremer. Tanto que eu queria ouvir-te falar, dizer o meu nome, mas tu nem isso sabes.

Sou apenas o corpo de costas no sofá, rabo espetado para cima, marcas de suor na pele preta.

Sexo não é amor, pois não?

E o que estou eu a fazer aqui? Tu, de forma sincopada, em gestos que são apenas animais e cheios de um instinto qualquer ancestral, segues o teu caminho até ao prazer. Movimentas o meu corpo e eu fico-me, sem dizer nada. Vou contigo como numa dança encenada de tareia, um wrestling moderno. Repara que não te amo, nunca te irei amar. Estou aqui disponível por mera solidão. Esta época do ano é mesmo assim. Tens em casa a mulher e filhos. Aposto que a tua casa cheira a coisas de Natal, lareira acesa, uma árvore luminosa, intermitente, elegante e cristã, pacotes embrulhados com laços bem feitos, impecáveis.

A tua mulher sorri quando tu chegas. Aposto. Sorri todos os dias. E recorda aquela frase, contigo a cair de bébado, uma noite, logo no princípio, a dizeres que precisas de ser abraçado todos os dias. Por isso, a tua mulher sorri, o que é uma forma de abraço. Tem as mãos a cheirar a cebola ou uma fralda suja, pronta para ser deitada fora, um tapete para aspirar, uma qualquer banalidade da vida doméstica, certinha. Ela faz o melhor que pode.

Eu sei que faz.

Enquanto tu vais e vens dentro de mim, gemendo baixinho, neste hotel sem história, sei tudo sobre ti e sobre a tua vidinha. Tens uma existência pequenina, sempre tiveste. Ontem, quando nos cruzámos, ao fim destes anos todos, tu disseste

Olha que eu ainda te desejo.

Pois, estou no hotel do costume. Basta bateres à porta.

Não resistes a uma provocação. Sempre foi assim e eu joguei aquela carta para saber se ainda tenho poder sobre ti; se ainda te posso dar qualquer coisa que a tua mulher nunca descobrirá. Precisamente por ser casada contigo está perante o desconhecido. Talvez o suspeite, mas duvido. Eu sou a mulher que se cruza na tua vida, sem estatuto, exigências ou sorrisos. Sei que existe uma maldade dentro de ti que os outros não vêem. Leio os teus pensamentos antes mesmo deles atingirem ao teu cérebro. É quase como se te tivesse criado. Tenho vertigens sobre o teu corpo, há um abismo que se abre e vejo o buraco mais negro quando me beijas. Penso nestas coisas enquanto fodemos e nunca serei capaz de te dizer metade, de te dizer seja o que for. Ficou tudo decidido há muito tempo. Eu tinha quinze anos, quase dezasseis. Ainda sinto a tua mão a puxar-me o cabelo, de forma ritmada, eu a lamber-te e, no momento em que inundaste a minha cara, afastei-me com nojo e ficaste com uma mão cheia de cabelos meus. Tive-te um asco quase animal. E tu sussurraste

Puta. És uma puta.

Pode ser que seja. A minha vingança foi ter deixado que outro fosse o primeiro, “o oficial”. Aquele momento, atrás do barracão da ginástica, na véspera das férias de Natal, foi eliminado pela perda da virgindade, pela entrega voluntária. Escolhi-o a dedo, repara, com requinte e malvadez. Um outro, coitado, que mal sabia ao que ia, mas que fez o seu melhor e não me chamou nomes. Ficou em silêncio no fim. Tirou o preservativo, limpou-se com um lenço de papel e acendeu um cigarro

Queres?

E eu que sim, claro, um cigarro para acalmar a adrenalina, a dor e a vergonha. As coisas mudaram muito. Já não tenho quinze anos, isto não é o liceu e o teu cheiro, essa vertigem de há pouco, é apenas um pormenor que me arrepia se calha a lembrar-me, apesar de nunca pensar em ti. Quando ligaram da recepão do hotel a dizer que estavas à porta, o meu instinto foi lançar uma gargalhada, porém teria sido uma crueldade para o recepcionista e não valia a pena. Contei o tempo que te levou a subir no elevador e despi-me, rápida.

Agora que estás quase no fim, agora que o teu suor se confunde com o meu, vou mergulhar nos teus olhos e, bem lá no fundo, vais ter um vislumbre da verdade de tudo. O teu orgasmo será de dor. E assim, espero ouvir-te gemer um pouco mais alto, sacudindo o corpo em cima do meu, as mãos fortes nas minhas ancas. Quando te abandonares, no teu final, direi

Só se come um sonho no Natal. Já está. Vai-te embora.

Não compreenderás nada. Pouco importa. Quando as festas passarem, as prendas e o bacalhau, essas trocas hipócritas típicas da estação, quando voltares, por fim, ao emprego lá estarei, a imagem da rapariga do barracão. Mesmo que tu não queiras. Sou a tua nova chefe. Assim, de forma inesperada. A rapariga do barracão de ginástica foi contratada para colocar ordem no caos que tu criaste e com poderes para avançar com uma ordem de despedimento colectivo. Podes, então, suspirar com propriedade

Puta. És uma puta.

Terás a razão do teu lado. Eu não me importo.

E agora, agora que estás a diminuir o batimento cardíaco, a tua respiração começa a normalizar, vê como me satisfaço até ao fim, porque tu, simplesmente, não sabes como é que isso se faz."

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