"E disse-lhe:
- É preciso limpar o figurino da inteligência – E apontei, imperceptivelmente com a cabeça para o piano, apesar de saber que o primeiro objecto em que pensara fora o pénis erecto do homem. Sobre ele repousa, de facto, a polissemia do toque – tocar a uma porta, tocar em alguém, tocar um instrumento -, mas eu referia-me, sem qualquer ambiguidade, ao toque leve de um vestido sobre a pele.
E expliquei-lhe que o vestido passa pelo pensamento, desce sobre o corpo e cobre os objectos do corpo,
que são as rememorações fotográficas do pudor. Sim, esse toque pode lembrar o pénis de um homem, estar misteriosamente ligado ao seu poder de toque.
- Sim – diz-me ela.
Perdi muito tempo imaginando que esse toque vestia a substância.
De facto, vestir a substância, contei-lhe, orná-la é um hábito que me ficou da época de O Livro das Comunidades
e, hoje, que a minha memória se estende ao tempo de Jodoigne, lembro-me de que compunha vestidos para o meu próprio corpo e que, a partir daí – do figurino, do corte, do juntar as peças, do coser, do provar, da procura de um adereço-, eu me sentia crescer como um cisne,
como um cisne vogando através das águas de um lago. Foi, de facto, uma frase. O lago, de certo modo, tinha herdado o poder do toque. No entanto, a presença da água nunca é de confiar. O que nela acabou por prevalecer foi o fluir, a água corrente, o rio inesquecível _____ o poder de toque deixara de estar fixo,
depois, deixara de estar cercado
agora, simplesmente fluía,
e escrevia como hoje em que me apetece voltar, de novo, a coser, a unir as costuras de uma saia.
Não, não procurava a minha própria beleza, eu sabia que
não estava destinada a isso.
Eu queria o poder,
o poder dos meus atributos,
o poder de não estar à espera,
o poder de chegar ao corpo.
- Não queria um homem? – perguntou-me.
Foi quando escrevi, no meio de uma saia aberta sobre a cama _____ o homem tem de renunciar ao poder, e a mulher ao homem
não invocando a abertura da saia,
a racha lateral que lhe abri
qualquer pedra de toque
vi
vi fisicamente, cair para o chão a fala,
esse poder de ficção,
essa narrativa interminável do toque, do toque a rebate, do toque em falso, do toc como eram, então, os adereços da substância, e vi
a saia abrir-se em poder de evocação, a bater-me no corpo enquanto corria, felicidade, tristeza e leveza alternando-se,
eu, a correr com Jade à minha frente,
ele, levantando a caça, e eu
procurando o pensamento que surgia e ressurgia por entre portas da paisagem.
- Sim. Amei-o. Levantava a caça. Fazia o que sabia. Se tivéssemos trocado de lugar, ele teria procurado o pensamento. Passou a dormir sobre essa saia. Nunca mais a usei.
- E o seu homem?
- Tudo reverte ao que será finalmente – e eu ignoro – mas se o “finalmente” se sentir,
como hoje me sinto,
ou for o que a música é,
neste momento,
será uma realidade fulgurante, uma muralha de resistência ao
medo e ao
Nada."
* de Maria Gabriela Llansol
1 comentário:
Llansol andou por lugares aonde eu sonho chegar nos meus caminhos.
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