17.2.11

o jogo da liberdade da alma*

"E disse-lhe:

- É preciso limpar o figurino da inteligência – E apontei, imperceptivelmente com a cabeça para o piano, apesar de saber que o primeiro objecto em que pensara fora o pénis erecto do homem. Sobre ele repousa, de facto, a polissemia do toque – tocar a uma porta, tocar em alguém, tocar um instrumento -, mas eu referia-me, sem qualquer ambiguidade, ao toque leve de um vestido sobre a pele.

E expliquei-lhe que o vestido passa pelo pensamento, desce sobre o corpo e cobre os objectos do corpo,

que são as rememorações fotográficas do pudor. Sim, esse toque pode lembrar o pénis de um homem, estar misteriosamente ligado ao seu poder de toque.

- Sim – diz-me ela.

Perdi muito tempo imaginando que esse toque vestia a substância.

De facto, vestir a substância, contei-lhe, orná-la é um hábito que me ficou da época de O Livro das Comunidades

e, hoje, que a minha memória se estende ao tempo de Jodoigne, lembro-me de que compunha vestidos para o meu próprio corpo e que, a partir daí – do figurino, do corte, do juntar as peças, do coser, do provar, da procura de um adereço-, eu me sentia crescer como um cisne,

como um cisne vogando através das águas de um lago. Foi, de facto, uma frase. O lago, de certo modo, tinha herdado o poder do toque. No entanto, a presença da água nunca é de confiar. O que nela acabou por prevalecer foi o fluir, a água corrente, o rio inesquecível _____ o poder de toque deixara de estar fixo,

depois, deixara de estar cercado

agora, simplesmente fluía,

e escrevia como hoje em que me apetece voltar, de novo, a coser, a unir as costuras de uma saia.

Não, não procurava a minha própria beleza, eu sabia que

não estava destinada a isso.

Eu queria o poder,

o poder dos meus atributos,

o poder de não estar à espera,

o poder de chegar ao corpo.

- Não queria um homem? – perguntou-me.

Foi quando escrevi, no meio de uma saia aberta sobre a cama _____ o homem tem de renunciar ao poder, e a mulher ao homem

não invocando a abertura da saia,

a racha lateral que lhe abri

qualquer pedra de toque

vi

vi fisicamente, cair para o chão a fala,

esse poder de ficção,

essa narrativa interminável do toque, do toque a rebate, do toque em falso, do toc como eram, então, os adereços da substância, e vi

a saia abrir-se em poder de evocação, a bater-me no corpo enquanto corria, felicidade, tristeza e leveza alternando-se,

eu, a correr com Jade à minha frente,

ele, levantando a caça, e eu

procurando o pensamento que surgia e ressurgia por entre portas da paisagem.

- Sim. Amei-o. Levantava a caça. Fazia o que sabia. Se tivéssemos trocado de lugar, ele teria procurado o pensamento. Passou a dormir sobre essa saia. Nunca mais a usei.

- E o seu homem?

- Tudo reverte ao que será finalmente – e eu ignoro – mas se o “finalmente” se sentir,

como hoje me sinto,

ou for o que a música é,

neste momento,

será uma realidade fulgurante, uma muralha de resistência ao

medo e ao

Nada."

* de Maria Gabriela Llansol


1 comentário:

Carrie (ou não) disse...

Llansol andou por lugares aonde eu sonho chegar nos meus caminhos.